Aturás mandiocas beijus
O Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro
Brava mandioca mansa!
A mandioca brava (Manihot esculenta) é tóxica. Através de uma engenhosa sucessão de manipulações – ralar as raízes, espremer a massa e torrar a farinha –, a toxicidade pode ser muito reduzida e um produto naturalmente tóxico é transformado em um alimento saudável, nutritivo e saboroso.
Nem toda mandioca cultivada é brava. Existe também a “mansa”, comestível, que se suspeita ter sido anterior à brava.
Alguns estudos sugerem que a Manihot originalmente não era brava e que seu teor de cianeto era baixo. A toxicidade foi sendo incrementada por ação dos agricultores indígenas interessados em proteger as lavouras devastadas pelas cutias que roíam e comiam, e ainda roem, os tubérculos enterrados na roça.
Ambos os processos revelam engenhosas manipulações e despertam a curiosidade do observador: como foi possível imaginar que um tubérculo poderia ser objeto de manipulações que o tornassem próprio ou impróprio para ingestão de seres humanos ou cutias?
Seríamos capazes de pensar em transformar o curare (Strychnos toxifera) – usado na medicina acadêmica e nas pontas das flechas como poderoso inibidor das contrações musculares – num tempero saboroso para os nossos alimentos? Imagine um prato de “arroz ao curare” com preparo semelhante ao do arroz com jambu (Acmella oleracea), que deixa os lábios levemente adormecidos.
A mandioca “amansada”, originária da Amazônia, de fato desempenhou e ainda desempenha um papel muito importante na dieta dos povos da América Central e do Sul, semelhante ao do trigo na Europa.
A exposição Aturás mandiocas beijus celebra o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, que tem na mandioca a sua rainha. Uma região em que o cultivo da mandioca em roças compartilhadas com outras plantas alimentícias prosperou e se diversificou através de sucessivas manipulações.
Nos roçados de Santa Isabel do Rio Negro, esses cruzamentos deram origem a mais de 200 variedades de mandioca com diferentes tempos de maturação e cozimento, texturas, toxicidades e sabores – um número significativo se lembrarmos que são conhecidas hoje no mundo todo cerca de duas mil variedades de mandioca.
Além da América do Sul e Central, onde estudos apontam que a mandioca teve origem, ela é cultivada em grande escala na Índia, África, Tailândia e Vietnam.
A que devemos essa alta diversidade na região do Rio Negro e em particular em Santa Isabel? Uma possível resposta é dada pelas pesquisas que a antropóloga Janet Chernela realizou ali nos anos 1980. Estas foram retomadas no fim dos anos 1990 por Manuela Carneiro da Cunha, Lucia van Velthem e Laure Emperaire, inspiradoras desta exposição.
Chernela e Emperaire atribuem o impressionante número de variedades à intensa circulação de estacas e sementes de mandiocas entre as roças da região, circulação esta propiciada em boa parte pelas normas que regem ou regiam os casamentos. Segundo a tradição, eles devem ser realizados entre jovens de etnias e línguas diferentes, o que provavelmente intensificou a troca e o transporte das estacas e sementes de mandiocas, “dotes” que sempre acompanham as noivas.
Essa norma prevaleceu nas tradições culturais das numerosas etnias do Rio Negro, uma região onde, ainda hoje, se contam mais de 20 etnias e são faladas cerca de 15 línguas indígenas.
Cruzar mandiocas e produzir novas variedades é importante não apenas porque permite ao agricultor colher mandiocas em diferentes épocas do ano, mas também porque garante que, se uma variedade é devastada por uma praga, há outras resistentes que preservam as características genéticas da planta.
O Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro – registrado pelo IPHAN como patrimônio cultural imaterial e comemorado pela exposição Aturás Mandiocas Beijus – não apenas trata da agricultura da mandioca e das outras plantas alimentícias cultivadas com ela, mas também revela os segredos de como preparar a terra, fazer farinha e com ela os saborosos beijus e beijus cicas, ou ainda sugere como separar uma variedade de outra pelo sabor, textura e odor – qualidades sensíveis, ausentes na taxonomia botânica, mas sempre presentes no cotidiano da roça.
Há mais surpresas para o visitante que percorre a mostra: ele descobre também que a queima das árvores ao preparar a roça – o ritual da “coivara” – serve para melhorar, com as cinzas, a fertilidade da terra e, com os galhos e troncos caídos, prover a sombra que protege do sol intenso a germinação das sementes e estacas.
Ele pode ver e tocar as talas de palmeiras e cipós que são trançadas com rigor, ritmo e simetria para fazer um aturá, o cesto cargueiro, uma peneira, um tipiti ou um abano, instrumentos de história milenar.
Na casa da farinha, montada na exposição do Musa, encontramos o forno, o ralador, a prensa, peneiras, abanos e o genial tipiti: um tubo de tiras de arumã trançadas com malhas largas circulares, que ao ser tracionado espreme a massa de mandioca recém-ralada, ainda molhada, no ralador que só os Baniwa da região de Santa Isabel “fazem bem feito”.
Há também razões políticas que justificam a exposição. Quando em 2011 foi pleiteado pela ACIMRN (Associação das Comunidades Indígenas do Médio Rio Negro) e a FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) o registro de patrimônio imaterial para o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, os agricultores indígenas pensaram que deveriam registrar as técnicas, os saberes e as manifestações de sua cultura tradicional, preservados ao longo de centenas ou milhares de anos.
Esses saberes concretos permitiram aos povos da região prover a sua alimentação, viver e crescer com sucesso, contando em mitos e lendas a história da sua origem e vida na floresta – sua e da mandioca, como descrevem as primorosas aquarelas do artista desana Feliciano Lana.
Os conhecimentos da terra, das técnicas e dos instrumentos tradicionais de plantio e “amansamento” são segredos que devem ser contados aos mais jovens e expostos em casas de cultura e museus vivos, onde as peças reunidas mobilizem todos os sentidos e descrevam os saberes e os sentimentos dos povos que lá vivem – povos que, ao ocupar as terras desde tempos antigos, definiram os territórios em que cresceram suas raízes. Foi lá que aprenderam a plantar, colher e transformar as mandiocas bravas e as mansas.
A demarcação das terras indígenas é hoje um direito reconhecido pela Constituição de 1988, mas que, passados 30 anos, ainda não foi concluída. Restam ainda muitas terras a demarcar.
Ao recuperar a memória, reunir testemunhos dos saberes e contar a todos a história da mandioca, o Musa quer contribuir para que seja reconhecido e respeitado o reconhecimento do direito à demarcação das terras dos povos indígenas.
Aturás mandiocas beijus é uma exposição pensada e construída com esses objetivos. Muitas cabeças e braços participaram da sua concepção: Carlos Nery, Sandra Gomes Castro, Cecilia Braga da Silva, Adilson da Silva Joanico e Ilma Fernandes Nery junto com Lucia van Velthem assinam a curadoria participativa. Regina Ferraz a desenhou e Juan Gabriel Soler Alarcón registrou os depoimentos, as imagens e o movimento.
Agradecimentos também são devidos às empresas Bemol e Fogás – que, através da Lei Rouanet-MinC, financiaram em boa parte esta exposição –, e à UEA, a Universidade do Estado do Amazonas, pelo apoio recebido.