Diabo sem Cu • Origem dos sarapós
Pinturas de Feliciano Lana
Texto editado a partir de narrativas de
Feliciano Lana, desana de São João
Guilherme Pimentel Tenório, tuyuka de São Pedro
Higino Pimentel Tenório, tuyuka de São Pedro
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Existiu um ser chamado Wasu. Ele era primo do Diabo sem Cu. Ele era solteirão, nunca conseguia mulher para ficar junto com ele. Ele morava na área da Serra do Traíra.
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Ele viajava por todas as aldeias naquela área a fim de procurar mulher. Viajava pelo rio. Descendo, ele chegou ao rio Traíra.
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Subindo o rio Traíra, Wasu chegou à Cachoeira Jacamim. Era a aldeia dos jacamins, a Casa dos Pássaros. Ali havia mulheres, mas nenhuma queria ficar com ele.
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Ele ficou triste, porque já estava quase chegando perto do seu povoado, sem conseguir mulher. Passando daquelas cachoeiras, encontrou um porto. Ali estava uma canoa.
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Wasu encostou a canoa no porto da Serra do Diabo sem Cu para ver quem estava morando naquele lugar. Ele viu uma casa, onde um homem estava morando sozinho. O homem reconheceu de longe que era seu primo.
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Teve um momento em que Wasu estava com necessidade de defecar, daí foi para o campo. Lá encontrou algo parecido com um beiju curadá, bem quentinho. Como Wasu estava com fome, comeu o beiju. Na verdade, aquele beiju era cocô do Diabo sem Cu.
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Um dia, Diabo sem Cu foi convidado pelo pessoal de outra aldeia para ir tomar caxiri com eles. Ficou somente seu primo Wasu. À tardinha, Wasu começou a ouvir um barulho no alto do jirau da casa, viu que algo se mexia. Ele abriu o baú, de onde surgiu uma mulher bonita.
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Um dia Diabo sem Cu viu que Wasu defecava diferente. Curioso, quis saber como ele fazia para defecar, assim.
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“Seria possível me furar também, para eu defecar por trás?”, perguntou o Diabo sem Cu. Como Wasu estava querendo matar Diabo sem Cu para ficar com a sua mulher, enfiou um pedaço de pau com força até chegar na garganta de Diabo sem Cu, que morreu.
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Depois que Diabo sem Cu morreu, Wasu puxou o pedaço de pau, arrancando suas tripas. Essas tripas deram origem aos peixes sarapós: sarapó-cunuri, sarapó-comprido, sarapó-grande e sarapó-das-folhas.
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O mito completo
Wasu era solteirão, nunca conseguia mulher. Ele morava na área da Serra do Traíra (próxima à atual fronteira entre Brasil e Colômbia, ao norte do rio Japurá). Viajava por todas as aldeias daquela área a fim de procurar mulher para casar-se. Viajava pelo rio. Descendo, ele chegou no rio Traíra. Ali, pegou canoa e veio subindo, até a Cachoeira Jacamim. Ali tinha mulheres, mas nenhuma queria ficar com ele.
Prosseguindo viagem, Wasu chegou à Cachoeira da Lua, atualmente chamada Cachoeira das Andorinhas. Juntavam-se muitas andorinhas. Ali também tinha mulheres, mas nenhuma queria ficar com ele. Ele ficou triste, porque já estava quase chegando perto do seu povoado, sem conseguir nada de mulher. Passando daquelas cachoeiras, encontrou um porto. Ali estava uma canoa. Atualmente, esse lugar se chama Serra do Diabo sem Cu.
Ele encostou a canoa no porto para ver quem estava morando naquele lugar. Ele viu uma casa, onde um homem estava morando sozinho. O homem reconheceu-o de longe, era Diabo Sem Cu, seu primo.
Os dois primos ficaram morando juntos naquele lugar. Teve um momento que Wasu estava com necessidade de defecar, daí foi para o campo. Lá encontrou algo parecido com um beiju curadá, bem quentinho. Como estava com fome mesmo, comeu o beiju. Na verdade, aquele beiju era cocô do Diabo sem Cu. Era o lugar onde defecava sempre. Poucas horas depois, o Diabo sem Cu foi defecar no mesmo lugar onde Wasu comeu beiju. Chegou lá e viu que alguém tinha comido seu cocô. Vendo isso, ficou muito triste, e disse:
— O que está acontecendo agora? Desde a minha infância até hoje, nunca me aconteceu assim. É a primeira vez que está sendo assim. Acho que é um sinal de mau agouro! Será que eu vou morrer?
Quando voltou pra casa, Diabo sem Cu contou tudo para o primo dele.
Só os dois homens moravam naquela casa. Mas Wasu viu que tinha materiais de trabalho de mulher. Tinha ralo, tipiti, cumatá, peneira, aturás, balaios, forno para fazer beiju. Tudo! Um dia, Diabo sem Cu foi convidado pelo pessoal de outra aldeia para ir tomar caxiri com eles. E foi-se embora! Ficou somente o primo dele, Wasu, para tomar conta da sua casa. À tardinha, começou a ouvir um barulho no alto do jirau da casa, viu que algo se mexia. Wasu ficou olhando o que estava acontecendo. De repente, viu que tinha um baú no alto do jirau. Ele abriu o baú, de onde surgiu uma mulher bonita. Ela saiu da mala, desceu e foi mexer em todo o material da casa. Fez beiju, farinha… Quando acabou tudo, ela entrou no baú. Wasu, vendo que ela era bonita, começou a namorar a mulher do Diabo sem Cu.
Um dia, os dois combinaram de irem se banhar. Chegando ao porto, Wasu disse:
— Vou defecar ainda! — Diabo sem Cu viu que Wasu defecava diferente. Curioso, quis saber como ele fazia para defecar, assim.
— O que é isso meu amigo? — o Diabo sem Cu perguntou.
— Não é nada, eu só estou defecando.
— Por onde? — quis saber o Diabo sem Cu.
— Aqui pelo meu cu.
— Eu também queria ser como você, meu amigo. Só que meu cu fica aqui, bem embaixo da boca.
Era isso que Wasu queria…
— Pois é, meu amigo, eu tenho o cu aqui atrás. Você não sente nojo, não? Você caga e cheira aí mesmo! Deve ser um horror! Quando você caga, deve cheirar mal.
— Pois, então! — concordou. — Eu queria ser como você. Quem que te ajeitou, colocando o cu para lá?
— Foi meu pai. Ele que furou meu cu aqui no fundo.
— Como ele fez?
— Com varas.
— Será que doeu quando ele fez?
— Não! Não dói nada! — respondeu Wasu.
— Você aprendeu com seu pai a fazer cu? — perguntou.
— Aprendi. Eu sei fazer cu.
— Então, meu amigo, não quer furar o meu como o seu?
— Isto é galho fraco, num instante a gente faz! — e subiram conversando para casa.
— Você fica torrando ipadu enquanto eu vou procurar as varas — Wasu disse e foi.
Primeiro pegou arumã novo, que está formando, depois um feixe de arumã de sapo, varas de caniço, palmas de espinho usado no fabrico da zarabatana, cipó de espinho (añaupida), varas fortes. Voltou com um feixe.
— Meu amigo, já trouxe aí para fazer cu. Você já vai cagar bem, já vai ter cu como eu.
— Então vamos já, no porto. Depois, a gente acaba de fazer ipadu — animou-se o Diabo sem Cu.
— Vamos logo, quero te ajeitar o quanto antes. Quero que nesta tarde você já tenha o cu pronto. Agache-se bem. Mas não olhe para cá, feche os olhos para não sentir dor, dói um pouquinho só — disse Wasu.
Primeiro ele fez com arumã novo, mole, que se quebra facilmente. Cutucou com força, o arumã cedeu.
— Womm… rorõ… — zoou.
O Diabo sem Cu pensou que já estivesse entrando. Wasu perguntou se tinha doído, e ele respondeu que não.
— Já entrou um pouco — mentiu Wasu, — agora eu vou ajeitar mais.
E repetiu com outro arumã novo.
— Já entrou bastante. Você sentiu dor?
O Diabo sem Cu respondeu novamente que não.
— Pois é! Você não vai sentir dor.
Aí ele pegou aquela vara forte, da lança-chocalho (yukubesugu). Enfiou com toda a força. No mesmo instante o Diabo sem Cu perdeu os sentidos, caiu morto. Wasu ainda enfiou o cipó de espinho, foi sacando as tripas e jogando na água, dando origem a diversas espécies de peixes, sarapós (dikea, gênero Gymnotus) e ituins (meperoa, Brachyhypopomus sp. e ñiripõra, Sternopygus cf. macrurus). Todos, peixes que têm o ânus pertinho da boca. As serras onde eles moravam ficam próximas do rio Traíra, uma chama-se Wasugututu e a outra, Diabo sem Cu.
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