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Kamaueni • Origem do aracu-de-pau e outros peixes

Pinturas de Feliciano Lana

Texto editado a partir de narrativas de
Guilherme Pimentel Tenório, tuyuka de São Pedro
Higino Pimentel Tenório, tuyuka de São Pedro

Quando os Tuyuka chegaram ao rio Tiquié, há seis gerações passadas, não conheciam a origem dos peixes dali. Apenas sabiam que alguns não eram bons para as pessoas, para sua mente. Encontravam dificuldades para benzer esses peixes para dar de comer a uma criança. Os Tuyuka consideram que, ao chegar numa terra estranha, é preciso conhecer as condições de todas as espécies que vivem ali. Por isso, procuraram os antigos habitantes desse rio e aprenderam com eles a história de Kamaueni. É uma história desse rio, daqueles que tradicionalmente viviam no Tiquié e agora estão na área do Pirá-Paraná: os Barasana (Panerõa), Taiwano (Eduria), Yuruti (Suna), Tatuyo (Pamõa)… Foi um pajé que veio ensinar aos Tuyuka a protegerem-se dos peixes reimosos e gordurosos (se wai) que faziam mal à saúde.
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Conta-se que dois irmãos viviam pouco abaixo da corredeira chamada Jirau dos Fantasmas (Watiakasa), acima da atual fronteira Brasil-Colômbia, lado esquerdo do alto rio Tiquié. No lado direito havia outra casa de fantasmas, chamada Caiá dos Fantasmas (Watiaewa). Ambos eram pajés.
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Quando fazem adornos de plumas e colares, os homens passam vários dias trabalhando e jejuando, num lugar apropriado, um pouco afastado da casa. Mas Kamueni estava com muita fome e disse: “Irmão maior, vou fazer necessidade!”. E foi até o Caiá dos Fantasmas.
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Quando Kamaueni chegou lá, viu mulheres-fantasmas moqueando peixes. Ele não resistiu. Seu corpo então começou a inchar e ficar engordurado depois que desrespeitou as restrições de dieta.
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O irmão maior viu que toda a carne de Kamaueni estava derretendo. Estava só cabeça e esqueleto. A carne dele estava caindo aos pedaços e se transformando em peixes que ele amaldiçoava, dizendo que quem os comesse ia se tornar violento, agressivo. “Esse meu irmão está estragado, vou abandoná-lo, deixá-lo aqui para morrer só!” pensou o irmão maior.
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“Meu irmão está me deixando, vou me vingar”, pensou Kamaueni. Através de sua força xamânica, veio como cabeça e se entranhou no alto do ombro do irmão maior, que ficou com duas cabeças. A cabeça de Kamaueni não deixava seu irmão comer nada — ela própria comia tudo. Magro, aborrecido, cansado de sofrer, o irmão levou Kamaueni para o mato, a fim de procurar ucuqui para dar à cabeça.
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Depois que comeu muito ucuqui, a cabeça de Kamaueni ficou com aquela vontade imensa de tomar água. Saiu do pescoço do seu irmão e foi atrás do sapinho que indica a presença de um igarapé. Depois que conseguiu escapar da cabeça de Kamaueni, o irmão mais velho e todos os demais se trancaram dentro da maloca.
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A cabeça se lançou na cumeeira, esperando. Os velhos pajés da maloca atraíram um bando de leões. Kamaueni quis encarnar, mas os leões esperaram a cabeça com a boca aberta e devoraram ela. Foi o fim da cabeça de Kamaueni. A maloca ficou livre e os miolos de Kamaueni transformaram-se em sapinhos que parecem ter só cabeça.

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O mito completo

Conta-se que dois irmãos viviam pouco abaixo da corredeira chamada Jirau dos Fantasmas (Watiakasa), acima da atual fronteira Brasil-Colômbia, lado esquerdo do alto rio Tiquié. No lado direito havia outra casa de fantasmas, chamada Caiá dos Fantasmas (Watiaewa). Ambos eram pajés.

Quando fazem adornos de plumas e colares, os homens passam vários dias em jejum. É preciso abster-se de todos os alimentos, exceto água e farinha branca. Então, o irmão mais novo, Kamaueni, sentiu sede…

— Irmão maior, vou fazer necessidade! — disse, ao sentir sede.

— Olha, estamos fazendo adornos de plumas (mapoa). Você tem que aguentar! Quando terminarmos vamos fazer uma reza para poder se alimentar! Depois, vamos pescar para dançar a primeira festa com esses adornos! Não vá comer qualquer coisa! — o irmão maior insistiu em precavê-lo.

Ele já sabia. Quando Kamaueni foi fazer necessidade um pouco abaixo do porto, viu mulheres-fantasmas moqueando peixes. Sentiu muita vontade de comer. Talvez fosse viúvo. Quando se agachou, ouviu a voz da sua finada esposa. Ele olhou e viu as mulheres rindo. Elas disseram:

— Vem comer, rapaz! Você já está aguentando fome há tantos dias…

Seduzido, Kamaueni não resistiu. Nadou até onde elas estavam, ao lado de um jirau cheio de aracus que assavam na brasa. Elas ofereceram e ele comeu. Imediatamente, aquele adorno que ele estava preparando e o banco onde se sentava para trabalhar ficaram pretos, impregnados de gordura, manchados.

— Ah, esse camarada já comeu peixe gorduroso! Já se deu mal! — pensou o irmão maior, no mesmo instante em que viu isso.

Quando Kamaueni voltou e viu seu adorno e o banco manchados de gordura, ficou triste porque tinha desobedecido a ordem. Ainda assim, terminaram os adornos de plumas.

— Eu avisei e você desobedeceu. A culpa é sua mesmo! Não sei como vamos fazer! Vamos à primeira festa com esses novos adornos de plumas! Vamos procurar peixe para oferecer na festa. No final dessa festa, vamos comer desse peixe! — disse o irmão maior.

Então eles foram pescar abaixo da boca do igarapé Abiu (Kanepuya), no regato Toco de Camarão (Dasiaturuya). Não conseguiram nada, os peixes dali viraram camarões e ficaram escondidos entre tocos e folhas. Kamaueni estava começando a inchar, era só gordura.

Desceram para o igarapé Guariba (Emõya), à procura de peixe para festa, mas só escutaram guaribas. Desceram até o Pumanako, ali todos os peixes viraram folhas podres. Foram para o Waniserora, os peixes tornaram-se acarás, que saem e se escondem no poceiro. Ele já estava bem gordo, continuava engordando sem comer, porque comeu quando deveria ter jejuado. Foram até o igarapé Mariya e fecharam-no com pari. Quando acabaram, Kamaueni disse:

— Vou ver se tem peixe, se dá para a gente pegar! — e subiu num pau, para olhar. O irmão maior ficou esperando que ele espantasse os peixes para pegar com puçá a jusante. Sem demora, apareceu um cardume, muito peixe.

— Ele deve estar derretendo! Acho que é ele que está derretendo e sua gordura está se transformando em peixe! — pensou, e foi devagar para olhar.

— Maldição daquele peixe, maldição dos peixes! Quem comer desse peixe vai ter inimigos! — viu Kamaueni dizendo do alto do pau. A carne dele estava caindo aos pedaços e se transformando em peixes que ele amaldiçoava, dizendo que quem os comesse ia se tornar violento, agressivo.

— Esse meu irmão está estragado, vou abandoná-lo, deixá-lo aqui para morrer só! — pensou o irmão maior. Assim, abandonou Kamaueni e saiu escondido, sem fazer barulho.

O irmão foi se deformando cada vez mais, caindo aos pedaços. Só ficou a cabeça. Ambos eram pajés. O mais velho veio remando, sem fazer barulho. Quando mudou o remo para o outro lado, o reflexo do remo chegou até Kamaueni.

— Meu irmão está me deixando, vou me vingar desse desprezo — pensou o irmão que derretia.

Através de sua força xamânica, veio como cabeça (Kamauenidupua) e se entranhou no buraco que existe entre a clavícula e o alto do ombro do irmão maior, que ficou com duas cabeças. A cabeça de Kamaueni encarnou totalmente, as veias se incorporaram ao irmão. Se ele cortasse a cabeça do irmão, morreria. Ao voltar à maloca com seus parentes, estava com duas cabeças.

— O que vamos fazer? Como vamos nos livrar dessa cabeça? — pensaram os outros irmãos.

Aquela cabeça não sossegava. Quando comiam peixe, só a cabeça comia. O irmão maior mal se alimentava, estava cada vez mais debilitado, pois só a cabeça de Kamaueni comia.

— Será que nosso irmão vai morrer? — perguntavam-se os parentes, até que tiveram uma ideia para tentar livrá-lo da cabeça de Kamaueni.

Era tempo de ucuqui. Naquele tempo, o ucuqui já era muito doce, mas não cortava a boca, como hoje. Eles rezaram para que o ucuqui ficasse cortante. Inventaram.

— Tem muito ucuqui lá! — disseram para Kamaueni.

— Eu quero comer! — falou a cabeça dele.

Trouxeram vários panacus de ucuqui para casa, mas só a cabeça comia tudo e queria mais.

— Lá no mato tem mais! — disseram e levaram o irmão com aquela cabeça até o ucuquizal que tem logo abaixo da boca do igarapé Puniya, em Neniroãbu. Ali, ele comeu à vontade.

— Eu queria tomar água! — disse, quando sua boca já estava sangrando.

— Vai comendo ainda! — colocaram pimenta socada para ele comer, isso o fez sentir mais sede.

— Eu quero tomar água! — insistiu.

Então fizeram os caroços de ucuqui se transformarem em sapinhos (neterõ). Todos os sapinhos coaxaram para indicar onde havia água, até que a cabeça saiu atrás de água. Sempre que a cabeça ia chegando perto da água, os sapinhos se afastavam.

Quando a cabeça saiu, o irmão maior, já sem a outra cabeça, desmaiou. Enquanto a cabeça de Kamaueni procurava água, o irmão maior foi levado para casa. Mas eles sabiam que ela voltaria, por isso fecharam bem toda a maloca.

— Buruburuburuburu… — escutaram, de repente.

— Kamaueni está chegando, a cabeça do Kamaueni! — disseram.

Ele era pajé e veio trazendo temporal e relâmpagos. Pousou bem no meio da cumeeira. Por isso, dizem que a cumeeira da maloca nunca é bem reta. Se ele tivesse só encostado lá em cima, dava para derrubar. Mas ele encarnou em todos os esteios da armação da casa, entranhou-se em todas estas varas, do mesmo modo que havia se entranhado no irmão. A maloca se tornou seu corpo. Ninguém poderia arrancar. Ali ficou, noite e dia, conversando.

— Quero ver meu irmão! — dizia.

Ninguém mais saiu de casa, até que todo o estoque de alimentos da maloca se esgotou e começaram a passar fome.
Se alguém saísse, a cabeça encarnaria novamente. Os velhos pajés da maloca atraíram um bando de queixadas, acreditando que a cabeça poderia encarnar numa queixada e partir com ela. Ela ia, mas voltava. Mandaram veados. A cabeça pulava nos veados, mas voltava e ficava esperando pessoa humana para se encarnar. Mandaram vir essas onças pintadas comuns que vivem aqui, para que comessem aquela cabeça. Não deu certo. Atraíram então onças de pelos longos (poayaiwa), mais ferozes. Kamaueni quis encarnar, mas os leões esperaram a cabeça com a boca aberta.

— Pá… pá… pá… — acabaram com ela, devorando-a. Foi o fim dessa cabeça de Kamaueni. Os leões a destroçaram e mataram. A maloca ficou livre e o pessoal pôde sair, de volta à vida normal. Os miolos de Kamaueni transformaram-se em sapinhos que parecem ter só cabeça.

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